Nos três primeiros meses de 2023, foram contabilizadas 2.764 uniões oficiais envolvendo menores de idade no Brasil, segundo levantamento da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais – Arpen-Brasil, entidade que reúne informações dos 7.761 Cartórios de Registro Civil no país.
Tais uniões são estabelecidas dentro da lei e não necessariamente envolvem um maior e um menor de idade. Em alguns casos, elas se dão também entre dois adolescentes. Ainda assim, elas são caracterizadas como casamento infantil, união formal ou informal em que pelo menos uma das partes tenha menos de 18 anos, segundo a Organização das Nações Unidas – ONU.
“Os altos percentuais de casamento infantil jamais podem ser lidos de forma unilateral. Não se trata apenas de uma questão de Direito das Famílias ou de registro público, mas possui atravessamentos de questões de gênero, psicológicas e sociológicas”, analisa a professora Bruna Barbieri Waquim, membro da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
“O casamento de crianças e adolescentes pode ser explicado pela reunião de tristes fatores: poucas ou inexistentes políticas públicas de cuidado com a família para evitar ou reduzir situações de disfuncionalidade que impactam o desenvolvimento infantojuvenil; a ausência de educação sexual, responsável por orientar crianças e adolescentes sobre os próprios limites dos seus corpos e sobre prevenção de abusos, inclusive intrafamiliares; a vulnerabilidade, especialmente da mulher que é, estatisticamente, a mais envolvida em casamentos dessa natureza; e a falta de conscientização da população contra a hipersexualização da infância e da adolescência, entre outros fatores”, explica.
Para ela, o casamento infantil representa uma violação dos direitos de crianças e adolescentes enquanto pessoas em processo de desenvolvimento humano, a quem o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) determina que sejam garantidas “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
“Com todas as mudanças que a sociedade brasileira conquistou, de afastar o casamento da sua função tradicionalista de ‘legitimar a reprodução’ e ‘transmitir patrimônio’, e de reconhecer nas crianças e adolescentes sujeitos de direitos, que merecem especial proteção, descabe criar ‘oportunidades/desculpas’ jurídicas para a permissão de constituir casamento ou união estável a quem se encontra em franco processo de desenvolvimento biopsicossocial”, ela pontua.
Idade núbil
Desde 2019, o Brasil permite o casamento de menores de 18 anos a partir da chamada “idade núbil”, estabelecida a partir dos 16 anos. A proibição passou a valer a partir da Lei 13.811/2019. Para a formalização, no entanto, é necessária a autorização legal dos pais ou responsáveis pelo menor de idade, de acordo com o Código Civil.
“A Lei 13.811/2019 cumpre perfeitamente a exigência de Proteção Integral trazida pelo artigo 227 da Constituição Federal, posto que afasta terminantemente as ‘desculpas jurídicas’ para violar a fase de desenvolvimento humano de nossas crianças e adolescentes. Hoje, é proibido, sem qualquer ressalva, a autorização de casamento de pessoa em desenvolvimento menor de 16 anos, o que mostra a sensibilidade do legislador brasileiro quanto à necessidade de estabelecer mecanismos rígidos que não admitam negociações quanto à dignidade das crianças e dos adolescentes”, avalia Bruna Barbieri.
Para ela, a lei isolada não tem o potencial necessário para transformar as questões sociais e culturais que “interferem no problema das uniões precoces”. A especialista ressalta que muitas uniões são estabelecidas de forma informal e a estatística estabelece a relação entre elas com os menores índices de instrução e renda.
“Precisamos concretizar o que o ECA estabelece sobre o atendimento em rede, transversal e interinstitucional. O problema do casamento infantil precisa ser enfrentado pelo Judiciário e pelo Executivo em parceria, mas, especialmente, pelos órgãos e entidades municipais, que possuem maior contato com a comunidade e podem identificar os casos que demandam educação parental e educação dos jovens”, pontua.
Escolaridade
Bruna Barbieri cita a pesquisa apresentada no relatório “Ela vai no meu barco – Casamento na infância e adolescência no Brasil”, do Instituto Promundo, segundo a qual a idade média de casamento e de nascimento do primeiro filho de meninas entrevistadas é de 15 anos, enquanto os homens são, em média, nove anos mais velhos.
Outras pesquisas relacionam a escolaridade ao matrimônio precoce. “Pesquisa realizada por Wodon e outros identificou que cada ano adicional no Ensino Médio reduz em cerca de 6% a probabilidade de que se envolvam em matrimônio antes dos 18 de idade e experienciem a maternidade precoce; no Brasil, Teixeira e Madalozzo destacam que o casamento infantil tem potencial para reduzir as chances de que as meninas concluam a educação básica e o Ensino Superior, na magnitude de 21% e 13%, respectivamente”, afirma.
“A educação transforma, dignifica e empodera. Sem educação, estamos fadados a assistir ao descumprimento reiterado da legislação protetiva e acompanhar os tristes números que estampam a violação de direitos de tantas crianças e adolescentes que deveriam estar brincando, estudando, se profissionalizando e usufruindo da sua condição de pessoas em desenvolvimento”, conclui.
Fonte: Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Discussão sobre este post